Em 30 de dezembro de 1921, em uma pequena cidade rural chamada Sale, na Austrália, nasceu Evelyn Grace Victoria Edwards, a quem o mundo mais tarde conheceria como Anne Hamilton-Byrne.
Seu nascimento ocorreu em uma família profundamente disfuncional. Florence, sua mãe, estava frequentemente em um estado de confusão mental, afirmando ter poderes sobrenaturais e, em uma sociedade que pouco entendia sobre transtornos mentais, era vista como uma “médium”.
Ralph, o pai de Evelyn, era uma presença intermitente, deixando Florence a lidar com a criação dos filhos e seus próprios demônios. Essa ausência paterna constante fez com que a jovem Evelyn praticamente criasse seus seis irmãos, vivendo entre orfanatos e a casa dos pais. A sensação de abandono e o desejo de controlar sua própria vida começaram a brotar ainda cedo. Anos depois, ela trocaria seu nome por Anne e tentaria reescrever sua própria história.
Vida fabricada
Aos vinte anos, após uma juventude mergulhada na dor de um lar despedaçado, Anne decide que precisa de um novo começo. Ela cria uma nova identidade para si, como quem troca de pele, e torna-se “Anne Hamilton”.
Com o novo nome, surge um novo propósito: viver uma vida oposta àquela que conhecera. Sonhava em criar a família perfeita, ter filhos felizes, viver em uma casa com uma cerca branca.
Casou-se com Lionel Harris e finalmente começou a viver o que parecia uma vida ideal. Mas, enquanto ela sonhava em expandir sua família com adoção, a tragédia atingiu. Lionel morreu em um acidente de carro a caminho de buscar a criança que adotariam.
Desse ponto em diante, uma amargura começou a crescer dentro dela. Anne perdera mais do que um marido; perdera o controle de sua fantasia. Para recuperar esse controle, ela decidiu que nunca mais deixaria que o destino tomasse algo dela.
Yoga e o caminho para o poder
Nos anos 1960, Anne descobriu o yoga, uma prática que começava a ser moda nos países ocidentais e oferecia a promessa de conexão espiritual e controle. Em sua primeira aula, algo dentro dela pareceu se acender.
Estava decidida a não apenas praticar yoga, mas a dominar essa prática e torná-la seu meio para alcançar influência sobre os outros. Logo se tornou instrutora, e suas aulas eram carregadas de fervor espiritual, onde ela pregava sobre um poder superior, explorando a fascinação dos alunos.
Em pouco tempo, Anne construiu uma legião de seguidores que a viam como uma guia espiritual, quase divina. Ela percebia o poder que exercia e, com sua confiança inabalável, começou a plantar as sementes do que se tornaria um culto, algo que finalmente lhe daria o controle e a reverência que tanto ansiava.
Charme e manipulação
Com o passar dos anos, Anne percebeu que, para expandir seu culto, precisava de influência e recursos. Ela identificou um novo alvo: Dr. Rayna Johnson, um professor de física com um fascínio pelo sobrenatural.
Decidida a impressioná-lo, ela “previu” que sua esposa ficaria gravemente doente durante uma viagem planejada para a Índia. Quando a previsão se confirmou, graças a uma doença comum entre turistas, Dr. Johnson ficou convencido de que Anne possuía habilidades extraordinárias. Assim, ele e sua esposa tornaram-se os primeiros recrutas de peso no culto.
Logo, Anne usou a influência de Dr. Johnson para atrair mais seguidores, recrutando profissionais poderosos — médicos, advogados, empresários e suas esposas, todos fascinados pela figura carismática de Anne. Juntos, cofundaram “A Grande Irmandade Branca”, o embrião do culto que mais tarde se chamaria “A Família”.
Uso de drogas
O culto cresceu e Anne começou a fazer afirmações mais ousadas: dizia-se a reencarnação feminina de Jesus Cristo e realizava “milagres”. Ela tinha agora médicos entre seus seguidores, que conseguiam drogas psicotrópicas para alimentar o culto de devoção. Com a ajuda de um psiquiatra devoto, o Dr. Lance Whitaker, Anne começou a usar LSD em cerimônias de iniciação.
Durante essas sessões, novos membros eram levados ao limite das alucinações, trancados em salas escuras até que Anne, vestida em mantos brancos e cercada por fumaça e luzes estrategicamente posicionadas, surgisse como uma figura divina.
Nesse estado alterado de consciência, os novos membros acreditavam realmente que estavam diante de um ser divino. Anne não apenas explorava a vulnerabilidade humana, mas controlava mentes com uma precisão assustadora. E assim, seus seguidores permaneciam fiéis, convencidos de que ela era uma divindade em carne e osso.
Bebês roubados
Em um movimento ousado, Anne persuadiu uma mulher rica chamada Joy a lhe deixar de herança um hospital psiquiátrico, onde ela começou a realizar uma série de crimes perturbadores. Com a ajuda de médicos do culto, Anne começou a monitorar as pacientes grávidas, especialmente adolescentes solteiras, e a roubar os recém-nascidos sob o pretexto de que essas jovens eram incapazes de criar seus filhos.
A partir daí, Anne começou a construir sua “família”, criando um exército de crianças, que passariam a vê-la como mãe. Muitos seguidores, inclusive, eram convencidos a entregar seus próprios filhos para Anne, que forjava documentos para que as crianças acreditassem que eram suas filhas biológicas.
Em pouco tempo, Anne possuía uma legião de crianças sob seu domínio, e as criava de forma rígida, com uma disciplina abusiva e desumana. A “família” ideal que sempre sonhara estava finalmente tomando forma, mas à custa de um terror inimaginável.
“Up Top”
Anne adquiriu uma propriedade isolada nas profundezas de uma floresta, conhecida como “Up Top”, onde mantinha as crianças longe de qualquer contato com o mundo exterior. Lá, sob a supervisão de “tias” devotas do culto, elas eram obrigadas a seguir um regime militar.
O dia começava às cinco da manhã, com Yoga, sermões e atividades que serviam para doutriná-las e manter o controle psicológico de Anne sobre elas. O café da manhã só era servido após horas de atividades, consistindo em frutas e vegetais cozidos. A desnutrição era apenas uma das formas de abuso, pois as crianças também enfrentavam castigos físicos severos, incluindo espancamentos e torturas psicológicas.
As punições eram aplicadas pelas “tias”, enquanto Anne aparecia apenas ocasionalmente, mantendo sua imagem de mãe distante e amorosa. Nesse cenário sombrio, as crianças não tinham noção do mundo exterior, vivendo em uma bolha de controle total.
Ela queria que seus filhos fossem o mais magros, esqueléticos e desnutridos possível, especialmente as meninas. Ela era muito dura com as garotas, nunca queria que elas engordassem e, se alguma das crianças engordasse, a comida era racionada e elas recebiam metade do que recebiam antes, o que era basicamente nada.
As outras crianças imploravam e imploravam às tias para que dessem mais comida a Cassandra (uma das meninas que Anne insistia em chamar de “fora do padrão), mas Anne não estava gostando nada disso e disse que Cassandra nunca deveria pesar mais do que três pedras até atingir a altura de um metro e oitenta ou mais.
Ela também drogava as crianças com LSD. As crianças de oito ou nove anos recebiam LSD duas vezes por dia e tinham delírios, alucinações, suavam muito, tremiam, ouviam vozes e ficavam completamente perdidas.
Algumas crianças ficavam sentadas e olhavam pela janela por horas e não se moviam. Na maioria das vezes, quando estavam sob o efeito do LSD, elas não diziam uma palavra, sua personalidade simplesmente desaparecia, eram apenas cascas vazias.
As meninas eram convencidas de que seus corpos estavam mudando e que, quando entravam na puberdade, eram feios e que, quando começassem a menstruar, não receberiam absorventes, tampões, panos e nem nada do tipo.
Anne frequentemente acusava as meninas de serem lésbicas se elas se vestissem de determinada maneira, também as acusava de andar de determinada forma para atrair os homens, e essas acusações começavam desde os cinco anos de idade.
Essas crianças, especialmente as meninas, cresceram odiando a si mesmas, odiando quem elas eram e a aparência que tinham, e começaram a se automutilar porque achavam que mereciam aquilo. Além disso esfregavam suas feridas na terra e não recebiam qualquer amparo para o tratamento de infecções.
Padronização das crianças
Com a necessidade de mostrar uma imagem “perfeita” de família, Anne obrigava todas as crianças a tingirem o cabelo de loiro platinado e usarem roupas padronizadas, apagando qualquer sinal de individualidade. Elas também passavam por aulas de dicção para adquirir um sotaque britânico.
Esse controle visual era parte de uma estratégia para impressionar novos seguidores e vender a imagem de uma família unida e harmoniosa, embora a realidade fosse muito mais sombria. Nos vídeos e fotos, as crianças eram forçadas a sorrir e fingir alegria, enquanto nas sombras da propriedade enfrentavam o horror diário de um abuso implacável.
O Início do fim
Sarah e Leanne, duas das crianças mais velhas, começaram a perceber que o culto não era tudo o que lhes ensinaram. Durante escapadas noturnas, elas conseguiam acessar o mundo exterior e ver como era a vida de crianças normais.
Essas fugas foram o início de uma rebelião interna que se espalhou entre as crianças, aumentando a tensão na comunidade isolada. Quando Anne soube das escapadas, ordenou que Sarah fosse expulsa. Ela a deserdou com frieza, afirmando que Sarah “não era mais sua filha”.
Contudo, Sarah e Leanne, vendo a expulsão como uma libertação, foram até a polícia e revelaram os horrores do culto.
Resgate final
Em 14 de agosto de 1987, com o testemunho de Sarah e Leanne, a polícia invadiu o complexo “Up Top”. As crianças, aterrorizadas com a chegada dos policiais devido ao medo que lhes fora incutido, resistiram inicialmente.
Mas, ao serem retiradas daquele inferno, finalmente estavam livres. Durante a operação, as “tias” foram presas e outras propriedades do culto foram vasculhadas, revelando um imenso estoque de drogas e documentação sobre o funcionamento da seita.
Anne e Bill fugiram para Nova York, onde permaneceram por anos fora do alcance da justiça australiana. Cassandra, uma das crianças mais novas, estava gravemente desnutrida e sofreu de uma condição chamada nanismo psicossocial, mas com o tratamento adequado, começou a se recuperar.
Os Serviços Sociais da Austrália cuidaram das crianças com dedicação, mantendo-as unidas e criando um ambiente de acolhimento e cura.
Justiça?
Embora houvesse relatos detalhados das crianças e vastas evidências dos abusos, o sistema judicial australiano encontrou muitos desafios para levar Anne e Bill à justiça. As acusações mais graves estavam prescritas, e os promotores conseguiram apenas condená-los por falsificação de documentos.
A sentença foi revoltante: uma multa de 5 mil dólares, uma punição que em nada refletia a gravidade dos crimes cometidos. Anne saiu livre, e até mesmo as “tias” receberam apenas pequenas penalidades.
No final, a influência de Anne no sistema judiciário permaneceu forte, e sua fortuna permitiu-lhe viver uma vida tranquila e luxuosa até sua morte, em 2019.
A resistência dos sobreviventes
A história dos sobreviventes do culto “A Família” é tanto trágica quanto inspiradora, e o impacto de sua libertação, comemorada anualmente no dia 14 de agosto como o “Dia da Liberdade”, mostra a resiliência dessas pessoas. Vários dos ex-membros do culto conseguiram construir vidas plenas e realizar seus sonhos, apesar dos traumas e cicatrizes emocionais.
Ben Shenton, resgatado aos 15 anos, casou-se, tem dois filhos, e hoje é um membro devoto de sua igreja local, trabalhando como gerente de projetos na IBM. Leanne, uma das corajosas que escapou do culto, também seguiu em frente: casou-se, teve filhos e se formou na universidade, onde construiu uma carreira na indústria da construção.
Anna Ree, neta biológica de Bill, estudou cinema, trabalhou como professora de inglês no Japão e hoje vive com sua família na Austrália. Rebecca, neta biológica de Anne, conseguiu processar Anne e recebeu uma indenização de 250 mil dólares.
Sarah, a primeira criança roubada e peça fundamental na queda do culto, transformou sua vida em uma missão de conscientização. Ela escreveu um livro que expôs os abusos que sofreu, estudou medicina, tornou-se médica e dedicou boa parte de seu tempo ao voluntariado em países como Índia e Tailândia, ajudando refugiados.
Sarah também conseguiu reconectar-se com sua mãe biológica, um momento profundamente comovente em sua vida. Contudo, o trauma a acompanhou para sempre; ela lutou contra o vício em medicamentos, tentou tirar a própria vida em 2004, o que resultou na perda de uma perna. Em 2016, aos 46 anos, Sarah faleceu devido a insuficiência cardíaca, provavelmente causada pelas complicações decorrentes de seu histórico de tentativas de suicídio e vício.
Infelizmente, a trajetória dos sobreviventes de “A Família” foi marcada tanto por superação quanto por sofrimento profundo, com alguns ex-membros tendo perdido a batalha para o trauma, optando por tirar a própria vida.
Para muitos deles, as cicatrizes físicas e emocionais são um lembrete constante da crueldade que suportaram. Apesar de Anne Hamilton-Byrne nunca ter tirado uma vida diretamente, ela causou danos irreparáveis, deixando um rastro de destruição que impactou profundamente aqueles que escaparam.