Lucélia Rodrigues da Silva nasceu no interior do Estado de Goiás. Filha de uma família extremamente pobre, a menina tinha seis irmãos e e vivia em um lar tumultuado onde as brigas entre o pai e a mãe eram constantes. O caso ficou conhecido por estar entre os 30 piores crimes de tortura contra crianças no Brasil.
A família biológica de Lucélia dependia de doações para sobreviver, e o que já era difícil ficou ainda pior depois que os pais se separaram. A mãe de Lucélia, Joana d’Arc da Silva decidiu entregar seus filhos para que vivessem com outras famílias.
Marli, uma das tias de Lucélia trabalhava como faxineira na empresa de Sílvia Calabresi. Sílvia era casada e mãe de três garotos, e segundo Marli, seu sonho era ter uma filha menina. Foi então que Joana entrou em um acordo com Sílvia: a empresária iria levar a garota para morar em sua casa e, uma vez por mês, Joana receberia um valor em dinheiro.
Fato este que chocou muitas pessoas, pois demonstrou que Joana não estava motivada somente pelo bem-estar de seus filhos, já que exigiu um retorno financeiro.
“Foram seis meses de princesa”
Lucélia foi levada para morar em um apartamento de dois andares em um bairro nobre de Goiânia, capital do Estado de Goiás. Sílvia a matriculou em um colégio militar, montou um quarto dos sonhos e deu a Lucélia todos os brinquedos que a menina jamais imaginou que teria.
“Fiquei com medo de minha tia não me levar, acordei às 5h30 e fomos. Quando eu cheguei, cumprimentei a Silvia, tomei café e logo depois pedi para banhar na piscina. Tomei banho e ela falou que tinha um bebê chamado Matheus. fui brincar um pouco com o nenê. Fiquei feliz porque vi que o Matheus gostou de mim. No outro dia, ela me falou quais seriam as minhas obrigações.”
Lucélia, em entrevista para a Record TV.
Os primeiros seis meses foram maravilhosos, Lucélia recebia visitas de Joana e sempre dizia à mãe biológica que estava tudo bem e que ela não gostaria de retornar para o interior. Foi então que tudo começou a mudar e o inferno começou.
O apartamento contava com mais de duas empregadas para realizar serviços domésticos, o que não impediu que a pequena Lucélia recebesse tarefas como limpar os banheiros e cuidar do filho menor de Sílvia.
“Eu acordava às 5h15. Fazia minhas obrigações. Limpava o quarto do Matheus, limpava o quarto dos meninos e depois o quarto da vó Lourdes. Depois, descia e limpava lá embaixo. Limpava tudo, lavava os banheiros, o quintal.”
Lucélia, em entrevista para a Record TV.
Os abusos de fato começaram, Lucélia era obrigada a acordar ás 5:15h da manhã para lavar o pátio, preparar as mamadeiras do irmão adotivo e limpar os quartos da casa. Logo em seguida ia pra escola e quando retornava recebia mais tarefas como dar banho no irmão e lavar as roupas da família.
A grande quatidade de tarefas fez com que Lucélia se mostrasse cansada e apresentasse sono em momentos que Sílvia definia como “não sendo hora de dormir”. A partir disso as agressões físicas começaram.
Língua cortada com um alicate
Ela apanhava diariamente e era torturada com instrumentos como um alicate, que, segundo o inquérito, foi usado para cortar a língua da garota. Além disso, em algumas ocasiões, a mulher colocava pimenta na boca, nariz e olhos da menina e a deixava sem comer por dias.
Lucélia ficava presa pelos braços por mais de seis horas seguidas, era obrigada a comer fezes de cachorro e lamber a urina dos animais. Uma das formas preferidas de tortura de Sílvia ela fazer com que a menina colocasse um dedo por vez na dobradiça da porta, para que ela pudesse fechar os esmagando.
Ela também revelou que foi abusada sexualmente, mas nunca quis identificar o agressor.
A garota disse que tinha muito medo de morrer. Em certa ocasião, após levar 70 pauladas na cabeça, Lucélia precisou ir a um médico. Sílvia disse que ela iria ao hospital, e instruiu a menina a dizer que caiu da escada e caso tentasse contar algo mais, seu castigo seria ainda pior.
“Ela me deu 70 pauladas na cabeça, 60 na nuca, nove no estômago. Eu lembro, porque fui obrigada a contar todas elas. Naquele dia não teve jeito e ela foi obrigada a me levar ao hospital.”
Lucélia, em entrevista para a Record TV.
“Um vizinho salvou minha vida”
“Dr. Fábio” como era chamado por Lucélia, era um vizinho que morava no andar térreo de seu apartamento. Era comum que ele cruzasse com Lucélia no horário em que ela saía para escola, ele sempre lhe cumprimentava com simpatia. A garota, mesmo com medo, recebia aquilo como um carinho e sempre sorria para Fábio.
Em determinado momento Fábio notou que Lucélia não ia mais à escola. Fato este que somado ao comportamento acuado da criança, levou o vizinho a fazer uma denúncia aos policiais da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DECA) no ano de 2008.
Amarrada e amordaçada
Ao entrar no apartamento, a polícia encontrou Lucélia amarrada e amordaçada com um pano velho em sua boca. A menina apresentava sinais de desidratação e desnutrição.
Justiça para Lucélia
Sílvia Calabresi foi presa em março de 2008 e condenada a 15 anos de prisão. Recebeu o direito de progressão para regime semiaberto em 2014. É doloroso saber o quão frágil é o sistema de justiça do Brasil, já que permitiu que após cumprir seis anos da pena, Sílvia já estivesse de volta à sociedade.
A empregada da criminosa, Vanice Maria Novais, também foi condenada, em junho de 2008, a sete anos de prisão por participação no crime. Já o marido de Sílvia pegou 1 ano e 8 meses por omissão, mas teve a pena comutada por serviços comunitários.
Também em junho de 2008, a Justiça condenou o casal a pagar uma indenização de R$ 380 mil por danos morais e estéticos, além de verbas trabalhistas à vítima.
A mãe biológica de Lucélia, Joana d’Arc da Silva, que havia ido a júri popular sob a acusação de ter recebido dinheiro para entregar a filha à Sílvia, foi absolvida. Indiciado por omissão, igualmente absolvido foi o filho de Sílvia.
Uma nova vida
Após ser resgatada, Lucélia foi encaminhada para adoção, e um ano depois, foi acolhida por uma família de Belo Horizonte. Ela mantém bom relacionamento com os pais até hoje. A policial Jussara, que tirou Lucélia do cativeiro, tornou-se amiga dela, tanto que foi madrinha do seu casamento, com Histênio Alves.
Ela finalmente foi entregue a uma nova mãe adotiva. Uma mulher a quem a jovem se refere como sendo sua “mãe de verdade”.
“Tia, você me ama?”
“Lucélia, eu estou conhecendo você agora, mas você é filha de um Deus que a ama muito e através dele eu sei que posso amar você!”
Conta, emocionada, a segunda mãe adotiva de Lucélia.
Essa teria sido a primeira pergunta que a criança fez ao encontrá-la.
Atualmente, Lucélia é missionária, casada e está grávida de seu terceiro filho. Ela segue viajando o país contando sua história a fim de evitar que outras crianças passem por esse sofrimento.
“É possível [superar]. Eu perdoei, escolhi perdoar. Perdoar não é esquecer. É lembrar e não sentir mais dor.”
Lucélia, em entrevista para a TV Anhanguera.